sábado, 28 de janeiro de 2012

Affonso Romano de Sant'Anna: O Homem e a Letra


Antony Gormley, Standing Matter I, 2001, forged balls bearing, 192 x 47 x 31 cm.

O Homem e a Letra 

Depois de Beranger ter visto seus vizinhos virarem rinocerontes 
depois de Clov contemplar a terra arrasada e comunicar-se 
em monossílabos com seus pais numa lixeira 
depois de Gregory Sansa ter acordado numa manhã 
transformado em desprezível inseto aos olhos da família 
e Kafka não ter entrado no castelo para ele aberto todavia 
depois de Carlito a sós na ceia do ano cavando o inexistente 
afeto no ouro dós salões 
depois de Se Tsuam perder-se não entre as três virtudes 
teologais 
mas num maniqueísmo banal entre o bem e o mal 
depois dos diálogos estáticos de Vladimir e Estragon 
na estrada.de Godot 
depois de Alfred Prufrock como um velho numa estação 
seca contemplando a devastação e incapaz de perturbar o universo 
depois dos labirintos de Teseu, Borges e Robbe-Grillet 
depois que o lobo humano se refugiou transido na estepe fria 
depois da recherche no tempo perdida e de Ulisses perdido 
no périplo de Dublin 
depois de Mallarmé se exasperar no jogo inútil de seus dados 
e Malevitch descobrir que sobre o branco 
só resta o branco por pintar 
depois dos falsos moedeiros moendo a escrita exasperante 
em suas torres devorando o que das mãos de Cronos 
gera e degenera 
depois da morte do homem e da morte da alma 
depois da morte de Deus na Carolina do Norte 
antes e depois do depois 
aqui estou Eu confiante Eu pressupondo EU erigindo 
Eu cavando Eu remordendo 
Eu renitente Eu acorrentado Eu Prometeu Narciso Orfeu 
órfano Eu narciso maciço promitente Eu 
descosendo a treva barroca desse Yo 
sem pejo do passado 
reinventando meu secreto 
                   concreto 
                   Weltschmerz 
Que ligação estranha então havia entre os nós e os nós 
de outros eus 
entre Deus e Zeus 
que estranha insistência que penitência ardente que estúpido 
e tépido humanismo 
que fragilidade na memória que vocação de emblemas 
e carência em mitografar-se 
que projectum árduo e cego que radar tremendo pelas veias 
que vocação de camuflar abismos e flutuar no vácuo 
que reincidente recolocar do vazio no centro do vazio? 

Que aconteça o humano com todos os seus happenings 
e dadas? 
que para total desespero de mim mesmo e de meus amigos 
I have a strong feeling that the sum of the parts does not 
equal the whole 
e que la connaissance du tout précède celle des parties 
e com um irlandês aprendo a dividir 22 por 7 e achar 
no resto ZERO 
enquanto grito sobre as falésias 
when genuine passion moves you say what you have to say 
and say it hot 
Bêbado de merda e fel egresso da Babel e de onde os sofistas 
me lançaram 
vate vastíssimo possesso e cego guiado pelo que nele há 
              de mais cego 
tateando abismos em parábolas 
açodando a louca parelha que avassala os céus 
diante do todo-poderoso Nabucodonosor eu hoje tive um sonho: 
OOO: INFERNO — recomeçar 
Salute o Satana, "Finnegans reven again!" 
agora sei que há a probabilidade da prova e da idade 
o descontínuo do tímpano e o contínuo 
que de Prometeu se vai a Orfeu e de Ptolomeu se vai 
      a Galileu 
Eurídice e Eu, Eu e Orfeu 
o feitiço contra Zebedeu Belzebu e os seus 


Madness! Madness!" 
sim, loucura, mas não é a primeira vez que me expulsam 
      da República 
loucura, sim, loucura, ora direis 
enquanto retiro os jovens louros de anteontem 


Que encham a casa de espelhos aliciando as terríveis maravilhas 
para que vejam quão desfigurado cursava o filho do homem 
             em seus desertos cheios de gafanhoto e mel silvestre 
que venha o longo verso do humano 
o desletrado inconsciente 
fora os palimpsestos! Mylord é o jardineiro 
eis que o touro negro pula seus cercados e cai no povaréu 
Ecce Homo 
ego e louco 
cego e pouco 
ébrio e oco 
cheio de sound and fury 
in-sano in-mundo 


Madness! Madness! Madness!
Madness
Summerhill
                 Weltschmerz 

— ET TOUT LE RESTE EST LITTÉRATURE


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Eis aí, leitor, um interessante exercício: identificar as miríades de citações literárias que o autor insere na caudal torrente deste texto...

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