sábado, 25 de fevereiro de 2012

Carlos Montemayor: 3 Poemas





Tradução de Izacyl 
Guimarães  Ferreira




Arte poética I


Para Fernando Ferreira de Loanda


Quando meu filho come fruta ou bebe água ou se banha num rio,
só diz que come uma fruta
ou bebe água ou se banha no rio.
Por isso ri quando leio meus poemas.
Não entende ainda tantas palavras,
não entende ainda que as palavras não são as coisas,
que num poema quero dizer o que nos supera a cada passo:
o amor entre os renasceres dos corpos e as recordações das tardes;
a ira entre quinzenas e casas emprestadas e roupas que envelhecem
as esperanças entre dívidas e ruas compartilhadas com dias monótonos
e com manhãs cuja única doçura é a da água que nos banha;
a honra entre empregos temporários e amigos desonrados;
a rapina entre os jornais e as repartições públicas;
a vida que nos abre os braços para levar
de um lado as noites chuvosas
e do outro os dias desditados.
Mas certa vez, comendo uma nectarina agreste de minha aldeia,
disse, sem dar-se conta,
que tinha gosto meio de pêssego ou de ameixa.
Porque desconhecia a fruta,
não disse o que era, senão como era.
Não entende ainda que é assim que eu falo,
que trato de entender o que desconheço,
e que tento dizê-lo, apesar de tudo.
Como se ignorar fosse também uma forma de entender.
Como se recordasse sempre
que a vida não é uma frase nem um nome
nem um verso que todos compreendem.
É, de meu jeito, como dizer
que bebo água ou como uma fruta
ou que me banho num rio.





Memória do verão


Era úmida a terra,
o cavalo que pastava,
o som do vento quando a tarde era uma vida só,
a solidão que era a presença real das colinas e da erva.


Era o verão. O azul se estendia como terra de promissão.


O som do vento nas colinas
era uma reunião de festa, de mulheres cantando,
de crianças descendo dos muros das igrejas carregados de risos.


O vento soava alarmado sobre as pedras e as árvores e
os corvos voavam.
As colinas douradas, ardentes, qual peitos de mulheres
despojando-se de suas blusas,
se elevavam como a respiração de uma amiga.
Detive-me sob uma árvore.
Deteve-se o dia, a mente, o ruído da terra convertida em vereda,
as pedras, os sinos de uma aldeia próxima.
Segui somente ouvindo o vento,
como se se elevasse da terra de meus avós, de meus pais,
as recordações de minha infância nessas mesmas colinas,
as horas impassíveis do verão.
O vento arrastou pensamentos, ruído, terra,
e mais além, na colina, vi como pousaram
sobre o pó do silêncio,
no dourado leito do verão que não preciso recordar,
porque esperam, porque lá, na colina que não vejo, esperam.






Memória da prata


Meu pai costumava fumar à noite
sentado fora de casa.
O calor do verão inundava o mundo.
Todas as estrelas se reuniam sobre nós
para que nenhuma se perdesse.
Olhava o serro da mina
e ao longe se escutava o som dos moinhos,
o rumor subterrâneo de metais, homens e água enferrujada.
Pensava que a prata era branca, brilhante como a chuva de noite
ou como os reflexos do rio ou da água estancada junto às penhas;
pensava até que iluminava a mina como enorme cascata.
Ignorava que era negra,
que era um verão sufocante
como a espuma da asfixia ou a morte,
e que os homens caíam como novas noites
num túnel sem estrelas, sem vento,
sem um pai fumando ao lado deles.


In Revista Brasileira #51 (Academia Brasileira de Letras). Leia aqui.

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