quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

O Manifesto Neoconcretista



O Movimento Neoconcreto (1959-1961)

Regina Célia Pinto
Por volta do final da década de cinqüenta, os cariocas fizeram uma revisão crítica em bloco de sua postura anterior. Denunciaram o excesso de dogmatismo a que tinha levado o concretismo, fazendo arte segundo receitas e que terminava, em vez de integrar a arte na vida, submetendo-a a um esquema de produção de potencial crítico e artístico zero.
Foi lançado então, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil de 23 de março de 1959, o Manifesto Neoconcretista; tendo a I Exposição de Arte Neoconcreta a participação de Lygia Clark, Lygia Pape, Amílcar de Castro, Franz Weissmann, Reynaldo Jardim, Sergio Camargo, Theon Spanudis e Ferreira Gullar. A essa exposição se sucederam outras nas quais participaram outros artistas.
Lygia Pape nos concedeu esse depoimento:

"Nós nos separamos do Grupo Concreto de São Paulo porque eles queriam criar um projeto de dez anos de trabalho para o futuro. O grupo do Rio achou que era racionalismo demais. Nós queríamos trabalhar com a intuição, mais soltos.


Trocávamos muita informação; havia mesmo uma certa impregnação na medida em que um conversava com o outro. O Neoconcreto não surgiu por acaso, também não foi uma coisa que nós elaboramos e depois começamos a trabalhar em cima. Foram as experimentações feitas antes que nos levaram a ele. Depois, o Gullar que era poeta, "copy-desk" do Jornal do Brasil, escrevia muito bem e estudava a teoria da arte, ficou encarregado de redigir um texto que tivesse a ver com o trabalho de todo mundo _ um texto posterior às obras.

Havia uma total liberdade, nada era dogmático. Todo mundo estava disposto a inventar. Não trabalhar só categorias convencionais. Na escultura, a idéia era destruir a base _ fazer um objeto que assim se chamasse mas que pudesse ser posto em qualquer posição. A pintura também não seria mais envolvida por uma moldura, avançaria no espaço. Eu mesma inventei um livro, chamado "Livro da Criação", onde narrava a criação do mundo sem palavras, meio artes plásticas, meio poesia. Esse sentido de invenção, de criação era o que realmente caracterizava o movimento. Naquela época ainda existia o pensamento de um quadro ser uma pintura na parede, para mera contemplação. Não tinha o sentido de participação, de uso de materiais diferentes; então tudo isso deu um sentido muito grande de liberdade. Na época não era fácil, nós tínhamos o mundo em oposição a nós."


Mário Pedrosa observou, com sua habitual acuidade, que a arte neoconcreta era "a pré-história da arte brasileira". Tal definição, que não pode ser entendida em termos literais, sublinha o caráter radical do movimento neoconcreto: pré-histórico na medida que questiona os fundamentos da linguagem artística existente e propõe uma volta ao "começo" da arte.


O Manifesto Neoconcreto, apoiando-se na filosofia de Merleau-Ponty, recuperava o humano, reabilitando o sensível, desqualificado desde Platão e procurando-o fazer fundamento de um conhecimento real. Tinha a intenção de revitalizar o relacionamento do sujeito com seu trabalho.
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MANIFESTO NEOCONCRETO

expressão neoconcreto indica uma tomada de posição em face da arte não-figurativa "geométrica" (neoplasticismo, construtivismo, suprematismo, escola de Ulm) e particularmente em face da arte concreta levada a uma perigosa exacerbação racionalista. Trabalhando no campo da pintura, escultura, gravura e literatura, os artistas que participam dessa I Exposição Neoconcreta encontraram-se, por força de suas experiências, na contingência de rever as posições teóricas adotadas até aqui em face da arte concreta, uma vez que nenhuma delas "compreende" satisfatoriamente as possibilidades expressivas abertas por estas experiências.

(...)

O neoconcreto, nascido de uma necessidade de exprimir a complexa realidade do homem moderno dentro da linguagem estrutural da nova plástica, nega a validez das atitudes cientificistas e positivistas em arte e repõe o problema da expressão, incorporando as novas dimensões "verbais" criadas pela arte não-figurativa construtiva. O racionalismo rouba à arte toda a autonomia e substitui as qualidades intransferíveis da obra de arte por noções da objetividade científica: assim os conceitos de forma, espaço, tempo, estrutura - que na linguagem das artes estão ligados a uma significação existencial, emotiva, afetiva - são confundidos com a aplicação teórica que deles faz a ciência. Na verdade, em nome de preconceitos que hoje a filosofia denuncia (M. Merleau-Ponty, E. Cassirer, S. Langer) - e que ruem em todos os campos a começar pela biologia moderna, que supero o mecanicismo pavloviano - os concretos-racionalistas ainda vêem o homem como uma máquina entre máquinas e procuram limitar a arte à expressão dessa realidade teórica.

Não concebemos a obra de arte nem como "máquina" nem como "objeto", mas como um quasi-corpus, isto é, um ser cuja realidade não se esgota nas relações exteriores de seus elementos; um ser que, decomponível em parte pela análise, só se dá plenamente à abordagem direta, fenomenológica. Acreditamos que a obra de arte supera o mecanicismo material sobre o qual repousa, não por alguma virtude extraterrena: supera-o por transcender essas relações mecânicas (que a Gestalt objetiva) e por criar para si uma significação tácita (M. Ponty) que emerge nela pela primeira vez. Se tivéssemos que buscar um símile para a obra de arte não o poderíamos encontrar, portanto, nem na máquina nem no objeto tomados objetivamente, mas, como S. Langer e W.Wleidlé nos organismos vivos. Essa comparação, entretanto, ainda não bastaria pra expressar a realidade específica do organismo estético. 
(...)
Por sua vez, a prosa neoconcreta, abrindo um novo campo para as experiências expressivas, recupera a linguagem como fluxo, superando suas contingências, sintáticas e dando um sentido novo, mais amplo, a certas soluções tidas até aqui equivocadamente como poesia. É assim que, na pintura como na poesia, na prosa como na escultura e na gravura, a arte neoconcreta reafirma a independência da criação artística em face do conhecimento prático (moral, política, indústria, etc.)



Os participantes desta I Exposição Neoconcreta não constituem um "grupo". Não os ligam princípios dogmáticos. A afinidade evidente as pesquisas que realizam em vários campos os aproximou e os reuniu aqui. O compromisso que os prende, prende-os primeiramente cada um à sua experiência, e eles estarão juntos enquanto dure a afinidade profunda que os aproximou.


(Ferreira Gullar, Lygia Clark, Lygia Pape, Amílcar de Castro, Franz Weissmann, Reynaldo Jardim, Sergio Camargo e Theon Spanudis)

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